O amor de Beatriz
(Maria Esther Lacerda)
*Crônica do livro Homem de cama e mesa ou qualquer amor
Ela colecionava conchas sem conhecer o mar. Ele jogava bilhar e não sonhava. Ela vestia camisolas de cetim. Ele bebia uísque puro. Ela fazia ioga, ele tomava analgésico pela manhã. Eles se amaram por uma eternidade, até que um dia ele virou anjo e fugiu do altar. Ela, persistente, continuou a amá-lo. Seu cheiro impregnado roubava-lhe beijos, entre o sono e delírios de saudade. Ele tatuou o amor no seu cotidiano e na alma.
José vivia no corpo e nos olhos de Beatriz. Ela, por certo, guarda esse amor, esse grande amor, entre beija-flores, a lua e o cheiro de jasmim. Quando tudo parece ficar escuro, quando a noite toma assento, ela corre para a janela e, com os olhos no céu, avista sua estrela. Acolhe o vento que vem da ladeira da praça, aproxima suave, traz em surdina cantos gregorianos e, ao lado da ausência, Beatriz decompõe sua lembrança.
Beatriz e José trocaram cartas e afetos, amigos e recordações. Às vezes eram amigos de cuidar, de espiar também. Ele era solto, ela, comprometida. Eles eram dois - pra gente, um amor. Viajavam fazendas e deslizavam asfalto, juntando os pés num destino só. Era bonito o par, maduro e solto. Era também feito maracujá, doce e azedo. Aos domingos iam ao cinema. Ele gostava de sorvete de pistache, ela preferia pastel frito com caldo de cana. Ele lhe dava flor, e ela, colo pra amar. Ele, distante, telefonava. Ela, com doçura, tecia remendos e curava seus arranhões. Um dia de fevereiro, José foi embora. Partiu de repente, numa rodovia de desencanto. Beatriz chorou. O tempo os ludibriou. Levou pro lado de lá, além do corpo, das mãos e dos beijos, seu amor.
Entre brisa de primavera, entre um ano e outro, ela tinha sempre o que guardar. Aguardava o tempo e, dentro de uma caixa de música, acolhia a espera.
Tudo era duplo: dois amores, duas casas, dois colchões, dois isso, dois aquilo, dois caminhos, dois pratos, duas toalhas, dois corpos – às vezes um só – anel solitário, silêncio, um lado da cama vazio, um outro guardado, um chinelo, um encontro marcado – desencontro – dos sonhos, dos caminhos, dos amigos, das palavras, do par – um amor quase perfeito.
Meia-noite, meia-página, meia-lua. Metade da história, metade da vírgula, metade do tempo, metade da laranja, metade de dois - um só – amor inteiro. Tudo feito prosa de um verso.
Nesse tempo sem par, ela espia a ladeira e reza na igreja do Rosário. Levanta cedo, compra pão e faz um só café.
Pela torre da igreja de Mariana o vento repassa feito um passarinho, o tempo pendura no sino parado e triste como os olhos de Beatriz. Tudo desfeito, quando chove: a rosa, as pregas do vestido, não o amor de Beatriz.
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