Glosa a este moto alheio:
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Vejo-a n'alma pintada
Vejo-a n'alma pintada
quando me pede o desejo
o natural que não vejo.
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Se só no ver puramente
me transformei no que vi,
de vista tão excelente
mal poderei ser ausente
enquanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
a traz tão bem debuxada,
e a memória tanto voa
que se a não vejo em pessoa,
vejo-a n'alma pintada.
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O desejo, que se estende
ao que menos se concede,
sobre vós pede e pretende,
como o doente que pede
o que mais se lhe defende.
Eu, que em ausência não vejo,
tenho piadade e pejo
de me ver tão pobre estar,
que então não tenho que dar
quando me pede o desejo.
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Como aquele que cegou
é cousa vista e notória
que a natureza ordenou
que se lhe dobre em memória
o que em vista lhe faltou;
assi a mim, que não rejo
os olhos ao que desejo,
na memória e na firmeza
me concede a natureza
o natural que não vejo.
Luís Vaz de Camões | "Se só no ver puramente".
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