viernes, 18 de agosto de 2017

Filme — anos sessenta

Este homem adulto. Este homem na terra.
Dez bilhões de células nervosas.
Cinco litros de sangue para trezentos gramas de coração.
Esse objeto se desenvolveu por três bilhões de anos.
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No princípio apareceu na forma de um garotinho.
O garotinho colocava a cabeça nos joelhos da titia.
Onde está esse garotinho. Onde, esses joelhos.
O garotinho cresceu. Ah, já não é a mesma coisa.
Estes espelhos são cruéis e lisos como asfalto.
Ontem atropelou um gato. Esta sim foi uma ideia.
O gato foi libertado do inferno desta época.
A moça no automóvel lhe lançou um olhar.
Não, não tinha aqueles joelhos que ele buscava.
Na verdade, queria era respirar fundo deitado na areia.
Ele e o mundo nada têm em comum.
Sente-se a asa quebrada de um jarro,
embora o jarro não saiba disso e continue a levar a água.
É extraordinário. Alguém ainda labuta.
Esta casa está construída. Esta maçaneta, esculpida.
Esta árvore, enxertada. Este circo vai fazer seu show.
O todo almeja se manter inteiro embora esteja em pedaços.
Como cola, pesadas e espessas sunt lacrimae rerum.
Mas tudo isso ao fundo e só ao lado.
Nele há uma escuridão terrível e na escuridão um garotinho.
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Deus do humor, faz dele alguma coisa sem falta.
Deus do humor, faz dele alguma coisa por fim.
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Wislawa Szymborska | "Filme — anos sessenta".
(Tradução Regina Przybycien)
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