martes, 2 de mayo de 2017

Foi-me alegre o viver, ja me he pesado

Foi-me alegre o viver, ja me he pesado,
Que do contentamento que sentia,
À minha custa estou desenganado.
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Ao regaço da Morte a dôr me guia,
Porém, porque com vida mais me mata,
Dilatando-ma vai de dia em dia.
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Manda-me amor fugir da morte ingrata,
(Pois não soffre limite em vós amor)
Que elle os laços ordena, elle os desata.
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Lancei contentamentos a voar,
Tarde os espero vêr, que he seu costume
Ter azas ao fugir, freio ao tornar.
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O pensamento posto em alto cume,
Para sacrificar-se à vossa vista,
No coração me guarda eterno lume.
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Com o pensamento os olhos tẽe conquista,
Pois sempre em vós está, porque os não leva,
Que elle muro não tẽe, que lhe resista.
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Ainda que minha alma em vós se enleva,
Em todo tempo não deixa de arder,
Quando o mõte arde em calma, ou quando neva.
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Vivei cuidados em quanto eu viver,
Ou porque em sombras vossas sempre viva,
Ou porque me apresseis para morrer.
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Vontade minha, sempre sois captiva,
Meu pensamento, nunca sois mudado,
Flamma de amor, sereis sempre em mi viva.
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Suave captiveiro, doce estado,
Brando fogo de amor, que em vós guardais
A fim de meu desejo retratado.
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Nunca nesta alma a minha, aonde estais
Falteis, porque então falta a esperança,
Sem quem me falta a vida muito mais.
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Senhora, em cujo peito ódio e mudança
Lanção fóra o Amor, e sua firmeza,
Que daes esquecimento por lembrança.
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Armada dos espinhos da crueza,
Trazeis por apparencias a brandura
No rosto, a qual o peito pouco presa.
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Mostrou-me hum leve bem minha ventura,
Paguei-o logo com longo tormento,
Que o gosto foge sempre, e a pena dura.
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A tanta dôr um leve sentimento
Nunca em vós pude vêr, quanto em vão digo,
Mais mudavel que o vento o daes ao vento.
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No princípio meu Fado me foi amigo,
Naveguei pelo mar deste desejo,
Que leva de hum perigo a outro perigo.
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Em vós he pouco o amor, em mim sobejo,
Cresce em mim, falta em vós, e de maneira,
Que de quanto em vós vi, ja nada vejo.
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Mostrou-se-me o tormento na primeira
Com rostro alegre, para que o seguisse,
E lancei-me a o seguir nesta cegueira.
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Fortuna, porque quiz que eu o sentisse,
Mostra-se, por mostrar qual dentro era,
Eu chóro meu engano, e ella risse.
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Quem em contentamentos vãos espera,
Espere cedo de desenganar-se,
Que tẽe breves limites sua espera.
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Porém quem ha, que mais queira livrar-se
De tão doce prisão, ou quem deseja
Dos nós desses cabellos desatar-se?
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Os olhos, a quem as luzes tẽe inveja,
Que em vós o Amor de amor tendes vencido,
Quem ha que vos não ame, e vos não veja?
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Rosto formoso, em quem está esculpido
O mór bem, que se póde vêr na terra,
Quem ha, não queira ser por vós perdido?
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Olhai, Senhora, as horas apressadas,
Que vem cobrindo o ouro dos cabellos
De neve, e torna as rosas descoradas.
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Ireis vêr ao cristal os olhos bellos,
E ja os não vereis quaes d'antes erão,
Pois quaes então serão, não queiraes vellos.
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Usai dos bens, que vão como nascêrão,
Olhai, que tudo desce de alto estado,
Que tambem os prazeres meus descêrão,
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Mas não descerá nunca meu cuidado.
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Luís Vaz de Camões | "Foi-me alegre o viver, ja me he pesado".

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