Não me julgueis, Senhora, a atrevimento
O que me faz fazer hum mal tão forte,
Que não me basta nelle o soffrimento.
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Que tal me traz ja agora minha sorte,
Que me faz buscar vossa crueldade
D'onde só por remedio espero a morte.
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Não vos pude callar esta verdade,
Porque força não tẽe poder humano
Contra outro, que não tẽe humanidade.
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Amor, que tudo faz para mór dano
me deu mal, levou-me o soffrimento,
Ah duro Amor, cruel, e desumano!
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Não vos lembre, Senhora, meu tormento,
Que este bem o merece a ousadia
De eu empregar em vós meu pensamento.
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Lembro-vos hum amor, que cada dia
Em mim tão verdadeiro e firme crece,
Que alheio me traz ja do que sohia.
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Não peço que o pagueis, como merece,
Que não mereço eu tanto, mas só peço,
Que por mim não cuideis que desmerece.
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Porque se só por si he de tal preço,
Que a supprir basta seu merecimento,
Quanto eu de minha parte desmereço.
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Bem vejo que em tomar o soffrimento
Para viver, melhor remedio fôra,
Que hum tão desordenado atrevimento.
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Mas eu, que do viver menos, ja agora
Que de todo a livro, pois crecendo
Vão com a vida os males cada hora,
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Vos quiz manifestar meu mal, sabendo
A quanta desventura se aventura,
Quem pretende fazer o que eu pretendo.
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Quizesse, ó oxalá, minha ventura,
Que castigásseis vós esta ousadia
Com hũa cruel morte triste e dura.
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Que não seria morte, mas seria
Hum suave remedio doce e brando
Deste mal, que me mata cada dia.
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Até quando, Senhora, e até quando
Terá lugar em vós vossa crueza,
E a morte não em mim, que a estou chamando?
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Abrande meu amor vossa dureza,
Que esta alma em si transforma com tal cura,
Que ja não he amor, mas natureza.
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Abrande ja hũa vida, em que só dura
A alma, porque veja, e exprimente,
Que não tẽe fim a grão desaventura.
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Abrande ja hũa dôr, que juntamente
A vida penetrou, e a alma triste,
E lhe roubou o estado seu contente.
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Mostrai-vos poderosa em quem resiste
Em desobedecer, ou enojar-vos,
E não ja contra quem vos não resiste.
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Em quem cuidar que digno foi de amar-vos,
Mostrai vosso poder, pois o merece,
Em mim não, que o não sou tão só de olhar-vos.
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Attentai por huma alma, que se esquece
De si, porque em vós pôz sua lembrança,
E tal, que em nenhum tempo desfallece.
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Nem suspeito que possa haver mudança,
N'hum coração, que mais que a si vos ama,
Dai-lhe ja morte, ou vida, ou esperança,
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Que tudo será glória por tal dama.
Que tudo será glória por tal dama.
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Luís Vaz de Camões | "Não me julgueis, Senhora, a atrevimento".
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Luís Vaz de Camões | "Não me julgueis, Senhora, a atrevimento".
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